quarta-feira, 1 de setembro de 2010

AUTOBIOGRAFIA

Em família, sempre fui tido por poeta difícil, ilegível. Como ninguém é profeta em sua terra, uma cunhada perguntou a um escritor que morava fora: É sério mesmo - ou pura embromação? Ria-me da fama. No último lançamento, carinhosamente, um tio me disse: Antes, não entendia nada de seus livros, agora, não entendo nem o título! Em seguida, sua neta de oito anos, sentada no chão do corredor do shopping, encostada no vidro da loja de balas toda colorida, lia, compenetradamente, os Escritos da indiscernibilidade. Meu tio lhe perguntou: Você está entendendo alguma coisa? De soslaio para não desviar o olhar do livro, na bucha, Juju respondeu: Tudo! Nada como leitores com pensamento ainda não viciado.

ALBERTO PUCHEU


PHARMÁCIA

antídoto para noites de vigília:
duas doses de dope - valium grass & jazz
efeito colateral: em caso de euforia
caminhar pela paulista, perseguir putas
mendigos, augustas e parar no OH!
ao amanhecer, uma média, café e
o sono merecido da noite anterior
embalado pela manchete do dia:
maníaco metralha prostitutas com poesia.

ALEXANDRE FERRAZ


pequeno diário da palavra


Toda palavra tem um oco
uma fenda uma avessa
claridade
de onde as formigas emigram.

Há gravetos, conchas vocabulares,
acentos à paisana, vírgulas úmidas e bivalves.

Um vento antigo
tange as crases desse poema, arrasta
os pontos de exclamação pelos cabelos.
Estende-os para secar
o sol mais triste de seu nome.

O meio-dia a esmo
bate a sua orelha na cancela.

Toda palavra tem sexo e sintaxe,
um amarelo em luta
com as folhas mortas no terreiro.
Alfabeto crivado de dízimos
onde não se pode tagarelar
sem doer um grão de arroz
por sob a língua.

Palavra carece de pátria
lugar de raiz e eleição.

Onde adensa sua espera, duas borboletas
grifam a giz a paisagem.


Iacyr Anderson Freitas


Cadeira*

Fonética da cadeira — Quando não seja muda, trata-se de uma consoante ora
oclusiva, ora fricativa.
Morfologia da cadeira — Os autores divergem quanto a classificá-la como artigo ou
numeral (nas lojas e show-rooms), adjetivo ou pronome (nas empresas e repartições públicas), preposição ou interjeição (nos apartamentos de subúrbio). Sem embargo,
predominam os que a consideram apenas conjunção.
Sintaxe da cadeira — Em geral sem sujeito, oculta o homem-nádegas. Pode-se atribuir-lhe incontáveis predicados, embora permaneça assento, braços e espaldar.
Estilística da cadeira — Se há estilo, declina para o não ser cadeira.
As leituras da cadeira — Manuais de instruções, bulas de antipiréticos, anais de congressos de lingüística, relatórios de guarda-chaves, resenhas do último livro do último filósofo francês.

*

Cadeira é oração para excomungar cama, porta e caminho.

*Do catálogo das cadeiras Kerouac, que as Lojas Beat fizeram publicar em Nova Iorque no verão de 1922.


Fernando Fiorese





O POEMA

Uma formiguinha atravessa, em diagonal, a página
ainda em branco. Mas ele, aquela noite, não escreveu
nada. Para quê? Se por ali já havia passado o frêmito
e o mistério da vida...

Mario Quintana


LISBOA: AVENTURAS

tomei um expresso
-----------------------------cheguei de foguete
subi num bonde

-----------------------------
desci de um elétrico
pedi cafezinho
-----------------------------serviram-me uma bica
quis comprar meias

-----------------------------só vendiam peúgas
fui dar à descarga

-----------------------------disparei um autoclisma
gritei "ó cara!"

-----------------------------responderam-me "ó pá!"

-----------------------------positivamente
as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá


José Paulo Paes