quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Encanto

O homem se aproxima de uma mulher. Sente seu perfume e decide falar-lhe. Depois de alguns passos, hesita e volta-se, um frio no estômago a paralisar sua vontade. Aquele perfume! Lembrou-lhe das rosas que roubava para sua primeira paixão. Decide voltar, mas qual a desculpa para puxar assunto? E se ela saísse correndo? Se lhe desse um tapa? Já sentia a dor da bofetada, a reação das pessoas à sua volta, julgando-o. Imaginou em que buraco iria se meter, como sumir da catástrofe e da vergonha? Podia pedir uma informação, o nome de uma rua e depois, quem sabe, passado o nervosismo primeiro, fazer um elogio, perguntar seu nome. Ela responderia? Ouvia os ruídos da rua, buzinas, apitos, gritos, sirenes... Alguém toca seu ombro. Ela!
A mulher pergunta:
- Você está perdido? Precisa de ajuda?


Reencanto

Zeca se aproxima de Ciça. Nove anos juntos, há um ano separados, Zeca já se relacionando com outra e agora, à sua frente, Ciça lhe diz que não pode viver sem ele. Mágoas, ressentimentos descem da mente ao peito, interrompendo as palavras, presas na garganta, formando um bolo. Está bem perto agora, sente o cheiro dos cabelos. Procura a raiva em algum lugar de seu íntimo. Teimosamente, seu corpo reage ao calor de Ciça, tão próxima, despertando aqueles sentimentos. Afeto, tesão, tranformando- o num vulcão prestes à erupção. Tenta desesperadamente se afastar, mas suas mãos querem acariciar os cabelos, os seios; a boca anseia pelo gosto daqueles lábios. Pensa na outra, evoca seu rosto, numa tentativa de sobrepô-lo à face de Cecília...
Zeca acorda bem tarde, numa cama que não é a sua.


Elisabete Rodrigues Limeira



Quem somos nós?

Somos umas crianças grandes. Sonhadoras, ingênuas, alegres, fantasiamos a vida quando a realidade é demasiadamente grande para nossa capacidade de suportar ou de conviver com os nossos problemas.

Somos às vezes adultos em miniatura. Mesquinhos, medrosos covardes e invejosos. Mas somos também, guerreiros, profissionais competentes, damos o melhor de nós quando queremos ser reconhecidos, valorizados, quando buscamos alcançar nossos objetivos, nosso lugar na escalada do sucesso e na satisfação das nossas necessidades.

Nesta empreitada, muitas vezes erramos, outras acertamos. Isso só conta como aprendizado: aprendemos com pequenos erros; com pessoas simples; com os mais velhos, experiência também conta. Sábios, são aqueles que experimentam, que sabem ouvir a voz do coração...

Às vezes nos encontramos numa encruzilhada sem saber qual rumo seguir...E quando fazemos uma escolha acreditando ser a melhor, podemos mais tarde concluir que colocamos o chapéu onde o nosso braço não alcançava.

Mas como podemos arrepender-nos do que não fizemos?

Por isso sempre valerá a pena revermos nossos conceitos, não querer ser sempre o dono da razão.

Temos que observar os sinais, acreditar na nossa intuição, saber ouvir o outro com respeito, com empatia, quem sabe não estamos cegos diante de um único modo de ver a vida...?

Pense nisso!


Josefa Matos



[o caderno de escrita] raiz

— não moço, não tenho não! como é? descendência. não tenho isto não. a família do senhor veio da itália? sei. a minha é assim moço, tinha meus pais, antes deles meus avós e antes deles parece que não tinha mais nada. eu devo ter vindo de um pé de couve ou do fundo de uma panela de ferro. simples assim moço. sou mineiro e nada mais.
se o homem veio do pó, nós aqui viemos da mesma terra onde depois plantamos o feijão, o milho e a cana-de-açúcar. isto ninguém sabe moço porque não se escreve nos livros, fica só na cabeça da gente pra ser contado depois. mas se o senhor quiser eu digo: a gente é feito da água que corria de um riachinho que depois secou. a gente viu ninho de passarinho, a gente ouviu o barulho de tudo quanto é bicho. o sol alumiava o dia, a lua alumiava a noite. e a terra cumpria seu prazo de plantar, brotar e ceifar.
a história que ninguém escreveu é esta. este negócio de descendência, a nossa deve que veio da garapa, da chuva grossa que caiu depois da estiagem. eu não sei dizer não moço, mas acho que é isto ou a gente brotou da terra feito mandioca.
um certo sujeito me disse que mineiro é assim, tem a cabeça com muita idéia e vive cercado pelos vales, daí ele tem que ir embora pra poder expandir, o sujeito que falou; se ele não vai embora fica amuado, fica até doido tem uns, porque a cabeça vai ficando grande demais. é deste jeito: os mais moços vão pra cidade; mas eles sabem do seu começo de raiz. igual aquela mangueira ali, olha a raiz dela moço, vai se espalhando, vai se embrenhando com a terra. nossa raiz se espalhou também, uns foram até para os "staites". mas vou te dizer pro senhor: no fim é tudo mineiro e nada mais.
um dia eles voltam pra terra, olha pra o senhor ver: se não for pra visitar os primos, pra ser comido por minhoca, é... muitos já foram pra o mistério sem fim, coisa que não se dá jeito. mas já nasceu gente demais também! e nós continua semeando. na mesma terra, só o riacho é que mudou.
o senhor veja moço, eu não sei nada não, mas se eu sei de alguma coisa te digo: o começo e o fim são da mesma qualidade de coisa. tudo é terra.

Kelly