quinta-feira, 1 de julho de 2010

Imitação

Poema de sete faces
Carlos Drummond De Andrade

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos , raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo,
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.


Poema sem face

Quando nasci, uma poetisa errante
dessas que vivem embaixo da ponte
Disse: Vai Cintia! Ser amante da vida

Os faróis, os cigarros, as pessoas
Algumas esmolas,
e por fim a humilhação.
Pedinte de palavras,
Viciada em inspiração!

Entre buracos e entulhos
Me alimento com sentimentos
Vivo com todas as sobras
Que outros cruelmente jogam fora

Sou moradora de sorrisos
Aprendiz em sobrevivência
Quem recicla a poesia
Como aqueles que catam papelão



Motivo
Cecília Meireles

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.



PM do século XXI

Eu prendo porque o código exige
E as contas lá em casa me espera.
Não sou alegre nem sou triste
Sou polícia.

Ladrão de sentimento
Meu eterno tormento
Atravesso noites e dias
E o prendo.

Se é traficante ou viciado
Se libero ou se condeno
- não sei, não sei.
Não sei se amo essa sina.
Ou se odeio.

Sei que sou homem. E a honestidade é tudo.
Tenho sangue de guerreiro e coração
de gigante.
E um dia sei glorificado:
- mais nada.


Cintia Machado
Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando...

Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira...

Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo...

Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E que ele me batesse e me estimasse...

Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena...

(Alberto Caeiro)


Isso

Mas! qual pacífica seria minha tarde
se fosse somente regar, e esperar crescer...

Ah! Qual figa de ouro! Se eu fosse o cabelo que se corta
sem olhar para onde os fios de outrora estiveram...

Qual terço! se meus ouvidos fossem capazes de uma nota só
moucos para ideias desta Kantilena
E se meu caminho fosse uma reta
no lugar disto em que escoheggel entre estradas
e não-estradas...

Mas qual chão de terra firme
se palavras fossem, aos meu olhos, analfabetas...

Antes isso que ser esta que espreme o corpo-caneta
e tenta reescrever os buracos
nas cartas comidas pelo tempo.

Letícia



O Auto-Retrato"
(Mario Quintana)

No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...
às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...
e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,
no final, que restará?
Um desenho de criança...
Corrigido por um louco!


O Auto-Retrato

No retrato que me revelo
-traço a traço-
às vezes me pinto bela,
às vezes me pinto fera...
às vezes me pinto interna.
E deixo transparecer m’alma
E resplandecer as brincadeiras
daquelas, que quando criança
fizeram minha alegria.
E assim – pouco a pouco – aparece,
nos traços bem coloridos,
Meu sonho, minhas lembranças
num desenho de criança...
Que um louco corrigiu!


Sueli Rodrigues



enigma
(lendo CDA)

e se do vazio
sempre fica um pouco

e se do pouco
constrói-se o mundo

e se do mundo
movem-se as guerras

e se das guerras
inventou-se o chumbo

e se do chumbo
nascem as flores

e se das flores
permanece a brevidade
do vazio


(Sol) Lyllytthhg
outono/2010




alvo
(lendo Orides Fontela)

o feto
é virgem
de palavras

a existência
antecede
o nome

o nome
se dá
a existência

o ser
batizado
no verbo

aponta
o branco
sangrado


(Sol) Lyllytthhg – outono 2010




devorar a estrela
(lendo Orides Fontela)

reter a transparência
do verbo

ventar a densidade
da pedra

devorar a estrela

silêncio impossível


(Sol) Lyllytthhg – outono 2010


o horror de ser
(lendo Borges)

continuar sendo
olhos acostumados e adultos

na criança
os medos

insônia
:nobreza social
(crianças com câncer
fome no mundo
ataques a navios humanitários)

reflexo
:Heráclito ou Narciso

beleza exterior
rodeia
novas águas

beleza perdida
na rotina
do controle remoto


(Sol) Lyllytthhg – outono 2010





(o horror de ser: I)
águas de Heráclito
(lendo Borges)

desde a infância
o medo constituído na insegurança
na estética ditada para a mulher
mas se os medos fossem apenas pueris
talvez ela nunca tivesse insônia constante
poderia ter pensado nas crianças com câncer
na fome no mundo
e no ataque ao navio humanitário em Gaza
olhou o espelho narciso
focou no seu umbigo:
era egoísmo e infelicidade
beleza externa

caiu sem querer nas águas
começou pelos cantos da casa


(Sol) Lyllytthhg – outono 2010



pulsações
(lendo Carpinejar)

estou a procurar palavras dentro de casa
pulsam tanto
quanto lá fora

lá parece sempre lindo

difícil é garimpar
aqui dentro.

(Sol) Lyllytthhg – outono 2010


refúgio
(lendo Carpinejar e Gaston Bachelard)

sou os objetos da casa
nos detalhes do dia-a-dia
pouco a pouco acumula-me
em gordura e pó nos meus cantos
estou em desordem
e pesada
e quase impossível

:num único dia

retiro-me do acúmulo do ano
fica o mínimo

:o que fica é possível suportar


(Sol) Lyllytthhg – outono/2010


solidão
(lendo Carpinejar)

hoje não quero gastar palavras. quero silenciá-las em pensamentos espalhados pelo quarto. tenho dispostos dois cadernos abertos, uma caneta, Bachelard, Ana Cristina César, o móveis de sempre e Piaf na mente e na alma. dentro do guarda-roupa fechado há uma caixa de sapatos. lá é o esconderijo de meus pedaços dispersos nas lembranças primitivas de uma eremita perdida em seus próprios sonhos.

:sonhara, um dia, ser inteira.

(Sol) Lyllytthhg – outono/2010


Canção de garoa
(MARIO QUINTANA)

Em cima do telhado,
Pirulin lulin lulin
Um anjo,todo molhado,
Soluça no seu flautim.

O relógio vai bater:
As molas rangem sem fim.
O retrato na parede
Fica olhando pra mim.

E chove sem saber por quê...
E tudo foi sempre assim!
Parece que vou sofrer
Pirulin lulin lulin...


sem título

Ciranda de roda
Me ponho a cantar
Me sinto criança
La ra rarara

Em meio aos pequenos
Sem bem me importar
Alegria não cansa
Que bom é sonhar

Passou tão depressa
Tem que terminar?
Não cresçam crianças
La ra rarara


Polianna Menina




Soneto da separação
(Vinícius de Morais)

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente



Soneto da Lipoaspiração

De repente da Cruela fez-se a Bela
Siliconada e com lentes verdes de contato
E na boca miúda fez-se carnuda no retrato
Uma mulher moderna, a artificial donzela.

De repente na pele fez bronzeamento
Drenagem linfática nas gorduras localizadas
E na alma retalhos de envelhecimento
E algumas cirurgias antecipadas.

De repente, não mais que de repente
Fez-se Barbie aquela que era humana
A meretriz tipicamente urbana.

Fez-se da pureza próxima ao pecado
Fez-se o último sonho abandonado
De repente, não mais que de repente.


Cintia Machado